Agenda
Latinoamericana’2002
página 154-155
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Vivemos num mundo
cada vez mais múltiplos e plural . As diversas culturas ancestrais que
por muito tempo tinham permanecido em silêncio e na sombra, se
redescombrem, se manifestam, buscam e dizem sua palavra, recuperam seu orgulho
e sua razão de ser. Os processos de pós-modernidade e globalização
contribuem para isto. Embora haja centros de poder que impõem suas
dinâmicas, muitos centros explodiram e, nas margens, outros olhares e
vozes se recuperam. Isto supõe que diversas tradições e
formas culturais se encontram, dialogam em certas ocasiões e noutras se
chocam...
Neste encontro homens
e mulheres se diferenciam. Têm papeis diferentes e possibilidades, porque
o gênero é uma realidade que atravessa seres e culturas, em seus
processos mais definitivos de limitação e procura de identidades.
Os homens e as mulheres não se comportam nem se entendem por foram da
construção genérica na qual foram realizados: “O
gênero aparece como resultado da produção de normas
culturais sobre o
comportamento dos homens e mulheres, mediado pela complexa
interação de um amplo espectro de instituições
econômicas, sociais, políticas e religiosas”.
Para olhar essas
diferenças, ao menos no nível do aparente podemos registrar, por
exemplo, os papéis distintos que jogam e jogaram as mulheres em
tradição e situação como as do Islam, a cultura
japonesa, na África, na Europa Medieval, ou nos costumes norte europeus
ou norte-americanos de hoje.
O Ocidente que se
considerava hoje avançado no que tem de ver as
discriminações raciais e genéricas, se olham os costumes
do Islam como radicalmente opressivos da mulher. Há
situação nas quais hoje todavia (séc. XXI) se exerce a multidão ou amputação do clitóris
da mulher como maneira de controlar suas sensações e sua
sexualidade... Realmente são situações determinadas pela
cultura, situação extremas... Porém todas as mulheres, em
todas as culturas, têm lutado e lutam por melhores
condições e por maior equidade.
Segundo os momentos,
em cada cultura, a mulher desempenha papéis de maior ou menor
importância, conseguir mais realizações ou menos... na
construção da vida social e institucional. Na medida em que teve
possibilidades de expressar-se, de mover-se, de construir... sua
contribuição foi insubstituível; na medida em que seu
contexto cultural o foi marginalizado e silenciando, suas potencialidades
ficaram mais estreitas.
Pelo lugar em que a
mulher foi colocada mais ou menos tradicionalmente, seu papel e sua
participação no mundo de hoje, intercultural e de diálogo,
pode ser duplamente significativo. Neste lugar a mulher desenvolve práticas
mais próximas à tolerância, ao diálogo, à
ecologia, ao apoio mútuo, às pesquisas conjuntas...
“As mulheres
não contribuem valores à cultura de paz, senão à
distância, tal como
dizia Virginia Wozlg em “Tress Guiness”. Trata-se de uma experiência que coloca as
mulheres num plano diferente ao homem, nem melhor nem pior, diferente, porque
historicamente o que fizeram foi cuidar do lar e isto desenvolve uma
posição... As mulheres resistem a perder essa cultura do
cuidado.
Neste marco e
perspectiva, a mulher popular latino-americana, majoritariamente mestiça
– no étnico, porém sobretudo no cultral – pode
dizer-se que é uma privilegiada, porque ela mesma é um
caldeamento de culturas e é construtora de uma vida eminentemente
inter-cultural.
Realmente, o
papel da mulher popular na mestiçagem se construía através
dos séculos no continente. Muito cedo, na época da Colônia,
já era observada esta contribuição. José Luis
Romero registra isto na sua bela obra sobre nossas cidades:
“A hora de recolher-se, cada núcleo social
se agrupava em seus bairros, porém enquanto durava o trabalho, os grupos
se comunicavam, inclusive
os mais fechados e exclusivistas. Comprar e vender eram funções
que se intercomunicavam e durante um instante equiparavam aos dos finais da
operação. Talvez por isto reparavam tanto os viajantes e
observadores no papel das mulheres que enchiam as ruas e o mercado, cada uma
dos quais voltava logo à sua residência com algo que havia
comprado, mas também com algo do que ouvira e aprendera. A mulata ou a
mestiça observava as vestes, os costumes e a linguagem de seu cliente de
boa posição e procurava imitá-lo; mas seu cliente aprendia
os usos vernáculos e populares e terminava gostando do encontro das
cores vivas que ostentavam as roupas do povoado, dos seus pratos preferidos,
das palavras vernáculas que incorporava ao espanhol, das gírias
que inventava o gênio popular...”
A mestiçagem
se fez costume, criou-se uma nova cultura, porém criaram-se, sobretudo,
hábitos de diálogo e intercâmbio, hábitos
indispensáveis para a sobrevivência nos meios sociais determinados
pela escassez econômica. Estes hábitos, estes costumes foram
transcritos, em nossos continente, de mães e filhos, até nossos
dias.
Por isto creio que a
mulher latino-americana, especialmente aquela que cresceu no meio do povo, pode
mostrar-nos um caminho para chegar ao diálogo, o respeito profundo e o
enriquecimento mútuo entre culturas.. Porque definitivamente o
século XXI não pode ser para a humanidade o destino dos modelos
da televisão, mas o destino dos encontros entre a grande família
humana. Oriente e Ocidente necessitaram um do outro e seus caminhos só
serão válidos para o futuro, se conseguirmos, como humanidade, um
horizonte comum que nos leva à harmonia com o universo e à paz,
de mãos dadas, com a equidade e justiça.
A
colocação de elo fundamental na criação da
mestiçagem, que teve tradicionalmente a mulher latino-americana, foi
reforçada ao longo da Segunda metade do século XX... porque nas
novas culturas populares urbanas, ela foi e continua sendo geradora e provedora
da vida. Com a chegada à cidade, nas diferentes gerações
de migrantes, os papéis campesinos mais ou menos tradicionais no
interior da família, tendem a transformar-se. A mulher na nova situação
mostra-se mais capacidade da adaptação, de risco e de
criatividade... quer dizer mais capacidade de diálogo cultural. Isto lhe
permite sair de sua insignificância, do desemprego e do isolamento. A
necessidade de sobrevivência nas novas coordenadas levam-na a ser
pioneira no que os sociólogos denominam como “o jogo de
cintura.”
A capacidade de
adaptar-se aumenta na medida em que quem a realiza é mais capaz de
intercâmbio e diálogo com os distintos meios, lógicas e
linguagens nos quais se deve mover. Não há êxito na
sobrevivência se negar ou rechaçar o diferente, esse êxito
só é possível quando há interação. A
interação requer achar a porta para penetrar no mundo do outro.
Nos processos de
migração a mulher foi construindo uma nova identidade na qual se
recolheram as maiores riquezas de suas tradições ancestrais. A
mulher mestiça, na qual se cruzam etnias, culturas e práticas,
assume novos moldes que, não têm que ver só
reivindicações pessoais, mas como nova forma de fazer e de ser...
Ivone Gebara chama a essas possibilidades conquistadas pela mulher
latino-americana de poder. “Em primeiro lugar chamo poder ao que as
mulheres pobres é sensivelmente capacidade de viver, capacidade de
apelar às diferentes energias disponíveis para existir, para
sobreviver, para viver... Poder como capacidade de organizar a vida, de
encontrar saídas, de arrumá-los criando pequenas alternativas e
continuar assim para a frente, tocando a vida”.
Estes atos que lidera
a mulher popular e que poderíamos chamar costumes para a
sobrevivência... uma das coisas que consegue fundamentalmente é
aguçar o ouvido e a vista. Trata-se se um treinamento para a escuta.
Somente a partir da escuta é possível qualquer diálogo...
muito mais o diálogo intercultural que nos está pedindo o novo século,
o novo encontro de culturas.
Por tudo isto, podemos falar da necessidade de estar à escuta das mulheres, para que elas nos ensinem a respeitar e compreender as diferenças. Diferenças culturais que não são só de gênero, mas também de religião, de evolução social, de papéis, de estruturas mentais ou familiares. Diferenças enfim que nos constituem homens e mulheres de hoje.