Agenda Latinoamericana’2002
pág. 192-193
À PROCURA DOS PRIMEIROS
HABITANTES DA AMÉRICA
De onde e quando vieram os primeiros
povoadores da América?
Benedito Prezia
A resposta a essa intrigante
questão tem provocado muitas teorias e hipóteses e está
longe de ser solucionada completamente. Três instrumentos são
fundamentais para lançar luz sobre estas questões: a
genética, a lingüística e a arqueologia.
Pesquisas dessas últimas
décadas confirmam uma teoria há muito aceita: o padrão
genético das atuais
populações indígenas revela que vieram do leste da
Ásia e não da Polinésia ou da Austrália. Os
indígenas atuais, tanto da América do Norte como do Sul, embora
possuindo padrões diferenciados, são descendentes de proto-indígenas que chegaram à América, através do Estreito
de Bering há muitos milênios atrás.
Nas pesquisas foram identificados quatro
grupos genéticos, que corresponderiam a três importantes levas
migratórias: os proto-indígenas, que teriam chegado por volta de10 mil anos atrás, isto
é, no final da glaciação Wisconsin, por volta de 8.000 a.
C.; a segunda, seria dos indígenas de língua Na-Dene, grupos
nômades do noroeste da América do Norte, que devem ter chegado um
pouco mais tarde; e a última, a dos Esquimós, que teriam chegado
há 4 mil anos, isto é, por volta de 2.000 a . C.
Se a genética ajuda a identificar
essa procedência, a lingüística é também um importante instrumental para desvendar
a antiguidade de cada grupo lingüístico. Pela semelhança e
diferenciação dos vocábulos, é possível
identificar a antiguidade de um tronco lingüístico e das
possíveis línguas mães. Assim na região onde hoje
é o Brasil, onde são encontrados dois troncos
lingüísticos -- o macro-jê e o tupi --, o primeiro teria
começado a diferenciar-se em famílias há 5 ou 6 mil anos
atrás, enquanto que a dispersão do tronco tupi ocorreu por volta
de 3 a 4 mil anos. A quantidade de línguas indígenas que ainda
sobreviveram ao grande massacre, tanto na América do Norte, Sul e Caribe
mostra a antiguidade desses povos e as sucessivas migrações.
Arqueologia. Se foram chamados de proto-índios, isto é, os primeiros, na realidade não foram os mais
antigos. Ao chegar ao continente, depararam com grupos que já estavam
aqui há 10 ou 15 mil anos.
Eram grupos caçadores e coletores,
que teriam passado para nosso continente durante a última
glaciação – a Wisconsin, chamada de Wurm, na Europa –
e que perdurou por cerca de 70 mil anos, indo até 7.000 a . C. Todo o
norte do planeta foi coberto por uma imensa camada de gelo, que em alguns
pontos alcançava três quilômetros de espessura. Essa
formação glacial sugou muita água dos oceanos, fazendo com
que o nível do mar baixasse mais de 80 metros, ficando descoberta uma
grande faixa terrestre de 1.600 quilômetros de largura, formando uma
região que recebeu o nome de Berígia. Era uma área coberta
de tundra e não de geleiras, formando uma passagem natural para animais
e posteriormente para humanos, que buscavam climas mais amenos.
Atravessando esse caminho, esses grupos
enfrentavam, ao noroeste do atual Canadá, regiões mais geladas,
conseguindo alcançar, sem muita dificuldade as tundras e regiões
menos geladas que os levariam a imensas pradarias na região central da
América do Norte.
A caça abundante estimulou a
engenhosidade desses povoadores, que viviam da caça de grande
mamíferos. Assim presença humana no continente pode recuar de
25.750 a 29.100 anos, como mostra a datação de dois ossos trabalhados
de mamute, localizados na região de Old Crow, no extremo norte do
Canadá, já próximo à fronteira do Alaska. Um outro
sítio importante, o de Meadowcroft Rockshelter, a 48 quilômetros
de Pittsburgh, na Pensilvânia, revela uma presença humana de
17.000 anos. Esse período foi chamado de lítico inferior.
Além de quatro sítios na
América anglofone, vários outros foram localizados no
México e na América do Sul. Em Pikimachay, perto de Ayacucho, no
Peru, foram encontradas lascas de pedra de rebordos retocados, ao lado de ossos
de preguiças gigantes, cavalos e camelídios, antepassados das
atuais llamas, com idades que variam de 14.700 a 20.000.
Importante descoberta no centro-sul do Chile, em
Monte Verde, revelou o que seria a povoação mais antiga da
América, com fileiras de casas de madeira, instrumentos de pedras,
restos de plantas e ossos de mastodontes com uma idade que varia de 3.500 a
12.500 anos. Em Tequendama e Aguazuque, na Colômbia uma presença
humana de 12 mil anos foi também atestada.
No Nordeste do Brasil, em São
Raimundo Nonato, foi localizado um grande santuário arqueológico,
que se preservou graças à aridez do lugar. Vestígios
humanos com cerca de 48.000 anos teriam sido localizados numa gruta. Como
são restos de fogueira, podendo ser fruto de um incêndio natural,
não estão sendo aceitos no meio científico. Ainda no
Brasil, ao norte do Rio Grande do Sul, foram também encontrados
artefatos de pedra com 12.700 anos.
Assim vai por terra a teoria, até há
pouco aceita, de que os primeiros povoadores teriam chegado no continente por
volta de 10.000 anos, como atestam as pontas de lança, encontradas numa
região do Novo México, denominada Clovis.
Entretanto esses mais antigos
antepassados têm dado muita dor de cabeça aos pesquisadores, pois
recentes achados têm apresentado resultados surpreendentes. Em Minas
Gerais, sudeste do Brasil, um crâneo de uma mulher da região de
Lagoa Santa, batizada de Luzia, tem provocado um alvoroço. O nome de
Luzia é uma referência à Lucy, representante feminina dos Australopithecus
afarensis, que viveu na África há
3,3 milhões de anos. Localizado em 1971, só recentemente foi
estudada por Walter Neves, da Universidade de São Paulo. Para espanto
dos pesquisadores, o crânio, de aproximadamente 12 mil anos, tem características
negróides, estando mais próximo
de populações da Austrália e da África, do que das
populações da Ásia.
Na América do Norte, um
crânio de mulher também levanta polêmica. Trata-se da ossada
localizada na Paleoindian Spirit Cave Mummy,
em Kennewick (estado de Washington), com 8.400 anos. O crânio seria de
uma pessoa com características caucasianas, próximo ao dos
europeus atuais e não de asiáticos, como as
populações ameríndias modernas. Isso desagradou os
Umatilla, povo indígena, em cujas terras foram encontrados os ossos.
Como as conclusões arqueológicas iam contra à
tradição oral do povo, que identificava ali a sepultura de um de
seus antepassados, pediram de volta essas relíquias, enterrando-as
novamente e interrompendo dessa forma as pesquisas.
Esses grupos antigos, tanto o de Kennewick,
como o de Lagoa Santa, fazem parte de levas migratórias anteriores
à diferenciação morfológica do tipo racial
mongolóide.
Se o estudo de lascas de pedras e ossos
dão informações do estilo de vida desses povos, grande
contribuição está oferecendo também o estudo das
pinturas rupestres do continente. Por volta de 12 mil anos atrás,
caçadores de São Raimundo Nonato deixaram gravadas cenas da vida
quotidiana, cujos temas mais freqüentes são a dança, práticas
sexuais, caça e rituais em torno de uma árvore. Como afirma
Niède Guidon, pesquisadora daquela região, aquela “é
uma arte alegre e livre”.
Esses povos também tiveram sua
evolução e involução, pois o auge
pictográfico dessas pinturas, por volta
de oito mil anos, revela as primeiras cenas de violência, como afirma
Pessis, também pesquisador naquela região: já aparecem
“execuções, lutas individuais e batalhas coletivas; as
cenas sexuais, inicialmente simples e envolvendo duas ou três pessoas, se
transformam também: grupos numerosos de indivíduos de ambos os
sexos praticam conjuntamente atividades sexuais. As ações de
caça, que representavam caça individual de pequenos animais,
passam a representar caças coletivas, com inúmeros guerreiros
atacando animais perigosos, como a onça”.
Outra importante descoberta surgiu
recentemente na Amazônia brasileira. São cacos de cerâmica
encontrados pela arqueóloga norte-americana Anna Roosevelt, em sambaquis
fluviais (locais formados por restos de conchas e mariscos à beira de
rios), com aproximadamente 9 mil anos. Essa cerâmica tornou-se a mais
antiga do continente. Foi um importante achado, pois a data mais recuada de
cerâmica na América era de 3,5 mil anos, em Valdívia, no
Equador. Isso mostra, que regiões ricas de nutrientes, como o delta do
Nilo e o baixo Amazonas, ajudaram a desenvolver muito cedo sociedades
complexas, capazes de desenvolver um artesanato mais elaborado.
A partir desse período, novas
levas migratórias, oriundas de outras rotas, tenham aparecido. A mesma
Niède Guidon, analisando fezes humanas fossilizadas (cropólitos)
da região de São Raimundo Nonato, de 7 mil anos, encontrou ovos
de ancilóstomo, parasita de regiões quentes, que vive no norte da
África, Mediterrâneo e Ásia Meridional. Como esse verme
não resiste à baixa temperatura, não teria sobrevivido em
climas frios, numa possível migração humana pela
Beríngia. Duas hipóteses são possíveis para essa
presença tão antiga no Brasil: ou o portador, oriundo daquelas
regiões o teria trazido em vida, numa longa viagem pelo norte do
continente até chegar na América meridional, o que não
parece possível; ou teria migrado da Europa, do norte da África
ou do sudeste da Ásia por via marítima.
Portanto essas descobertas têm trazido muito mais dúvidas do que respostas, para o complicado quebra-cabeça do povoamento da América. Mas algumas certezas já se definem: que houve não apenas uma, mas várias migrações para o nosso continente e em diferentes épocas. Que a região de Bering ou Beríngia foi uma importante ponte terrestre na última glaciação. E que as primeiras migrações datam de uma época em que o tipo racial mongolóide ainda não havia se estabelecido.