CULTURAS EM DIÁLOGO

 

Texto-Base da Agenda latinoamericana’2002:
As Culturas em diálogo

Paulo Suess

 

 

 

O diálogo cultural nas Américas está hipotecado pelo passado colonial e pela hegemonia contemporânea do pensamento neoliberal. Nas culturas marcadas pelo patriarcado, pela colonização e pelo autoritarismo do pensamento único se instalaram hábitos de submissão, cujos argumentos preponderante são a idade, a reputação social, o dinheiro e o poder. Mesmo sem a colonização e sem o monólogo do pensamento hegemônico, o diálogo entre pessoas de diferentes culturas nunca é “natural”. Conviver com a diferença exige sempre autodisciplina, aprendizado e a contínua construção biográfica e histórica de objetivos comuns.

A modernidade substituiu as autoridades tradicionais pela autoridade de uma suposta razão única. Mas, esta razão, que se desdobra nas culturas, e mesmo nas ciências, com vozes diferentes, não dispensa o diálogo. Através da democracia, a modernidade formalizou o diálogo político. Este diálogo está permanentemente ameaçado pelas interferências do poder econômico que, além do lucro, poucos argumentos reconhece.

Hoje, no mundo marcado por contatos interculturais, impostos pelos meios de comunicação, por migrações, interdependências econômicas e rápidas transformações, o diálogo entre culturas é uma exigência da convivência e sobrevivência de diferentes projetos de vida e lógicas culturais. Mas, o diálogo é também uma necessidade no interior de cada cultura onde emergem conflitos entre tradição e inovação. O diálogo entre as culturas e nas culturas faz parte da responsabilidade de cada projeto de vida pela paz universal da humanidade e pela continuidade do projeto de toda a criação.

 

 

 

1. Conceitos e discernimentos

O mundo contemporâneo nos confronta com conceitos diferentes de cultura. O conceito representa uma convenção, portanto, um ponto de vista ou uma leitura que capta aspectos da realidade social em função de determinados interesses. O nosso interesse é a vida dos pobres com dignidade e em justiça, na diversidade de suas culturas, em harmonia ecológica com toda a criação e criatura. No meio dos múltiplos conceitos de cultura se destacam dois:

- a cultura como um setor ou uma esfera das atividades humanas, ao lado da esfera sócio-política e econômica; neste caso, a cultura é considerada “ideologia” no sentido amplo (educação, arte, religião, atividades espirituais e intelectuais), e

- a cultura como totalidade das atividades humanas incluindo as atividades sócio-política, economia e ideologia, seja na esfera material, intelectual, espiritual ou simbólica.

   A leitura de “cultura” que proponho neste texto está mais próxima do segundo conceito, que é holístico, dando ênfase à textura cultural abrangente que permeia todas as atividades humanas. “Culturas em diálogo” visa não somente o diálogo de uma esfera da realidade social – a esfera ideológico-cultural – com a mesma esfera de outras culturas, mas o diálogo com o conjunto de práticas humanas que configuram o “projeto de vida” de um povo ou grupo social. Só o conhecimento holístico da lógica e prática cultural do Outro permite compreender e discutir opções diferentes nas esferas do político, econômico e ideológico. O poder não é um adversário externo da cultura, mas faz parte de sua dinâmica interna. Também “estruturas de poder” são histórica e culturalmente construídas, administradas e transformadas.

A cultura é um mosaico de práticas que configuram o “projeto de vida” de um povo ou grupo social. As atividades culturais estão orientadas para a adaptação e organização da vida, e para a expressão e interpretação do sentido desta vida. Através de sua cultura, os grupos sociais se adaptam ao seu meio ambiente, se associam uns aos outros, criam laços intra e interculturais e se organizam em instituições sociais, expressam seu pensamento e sentimento e interpretam seu estar-no-mundo e seus sonhos de um futuro melhor.

A cultura representa, numa primeira instância, uma longa herança da natureza que nos ensinou a colocar “ordem” e comportamentos calculáveis no caos, no acaso e na contingência. No aspecto organizativo e programado da cultura adaptativa-material e na cultura social, a humanidade está próxima ao mundo animal, que também tem uma certa previsibilidade organizacional. Também os animais dispõem de habilidades de adaptação coletiva ao meio ambiente e de organização social, controladas ainda por programações genéticas, os assim chamados instintos, que se formaram no decorrer de milênios. Mas, no imediatismo do mundo animal falta a mediação simbólica, que cria uma certa distância entre sujeito e objeto; falta também a liberdade individual que pode mudar essas programações coletivas. Por isso pode-se falar da cultura ou, de certo modo, da “indústria” cultural das abelhas, mas não se pode dizer, que as abelhas são sujeitos de cultura.

Numa segunda instância, a cultura nos capacita a abandonar trilhas herdadas, biologicamente encravadas no DNA comportamental e culturalmente guardadas em instituições, leis normas e comportamentos “corretos”. Esse abandono da programação, que está na origem da diversidade cultural, acontece pela criatividade e inovação individual. A diversidade cultural não é, essencialmente, uma questão climática ou geográfica. Na mesma região amazônica, por exemplo, povos e grupos sociais constroem com extraordinária diversidade a sua vida material, organizam a sua vida social, cultivam a sua vida intelectual e espiritual. Segundo o lingüista Aryon DallIgna Rodrigues, há 400 anos havia perto de 700 línguas na Amazônia e ainda existem, na mesma região amazônica, 140 línguas faladas.[1] Criatividade e transgressão cultural não produzem novamente um caos primordial. São conquistas de liberdade com regras de jogo e, geralmente, sem previsibilidade do resultado. Essa liberdade e variabilidade, pela articulação entre “tradição coletiva” e “inovação individual”, confere às culturas sua dimensão histórica. A modernidade - enquanto movimento cultural-civilizatório - deu novos impulsos às liberdades individuais.

A segunda instância da cultura, a liberdade individual, forja um novo elemento. Ela quebra o imediatismo da confrontação com o mundo através dos sentidos. A cultura funciona como um entreposto entre os sentidos humanos e os objetos. Sempre usamos óculos culturais, portanto, mediações simbólicas de mitos e metáforas, palavras e instrumentos para perceber algum sentido nos objetos observados. Nesta segunda instância a confrontação imediata com o mundo se torna, pelo distanciamento simbólico, compreensão do mundo. O mundo simbólico transforma o agarrar animal dos objetos em compreensão humana de redes, significados e tempos, nos quais os objetos estão inseridos. O distanciamento, simbolicamente mediado, é o ato fundador da cultura. O contato imediato com o mundo pelos sentidos se transforma, pelos símbolos, em contato mediato com sentido. Língua, arte, mito, religião e ciência trabalham neste distanciamento que permite uma compreensão imaginativa e um discernimento intelectual, que, por sua vez, permitem a construção de significado e sentido.[2]

   A mediação simbólica, cuja gênese deve ser pensada na segunda instância, onde surgiu a liberdade individual, tem um efeito retroativo e se projeta na consciência humana sobre a fase anterior da evolução, como se não tivesse mais “natureza” ou “programação biológica” no agir cultural. Em conseqüência disso, o pensamento moderno colocou a “cultura” em contraste com a “natureza”. A humanidade procurou progressivamente livrar-se da dominação da natureza, aumentando a distância entre natureza e cultura,

- pela língua: nomear objetos significa distanciar-se deles;

- pela religião que resolveu a questão da vida depois da morte “natural”;

- pela técnica que resolveu, ao menos parcialmente, a questão da imprevisibilidade e da dependência da natureza.

Descarte definiu a distância existente entre “cultura” e “natureza”, entre “sujeito” e “objeto” como uma distância entre “algo que pensa” (res cogitans) e “algo que não pensa” e só tem extensão (res extensa).

O distanciamento produziu, na consciência humana, uma ruptura, que na realidade não aconteceu. A humanidade antes de Darwin não queria ser lembrada dos seus ancestrais, nem de sua animalidade, nem de sua naturalidade. Rompeu progressivamente, no seu imaginário, a conexão que permitiu compreender o ser humano como parte integrante da natureza. A partir deste momento, a relação entre natureza e cultura humana é caracterizada pela dominação e exploração em prejuízo não só da natureza “objetiva”, mas também da natureza “subjetiva” que sobrevive em cada ser humano. O desastre ecológico lembra a teia orgânica que existe entre a vida em estado de natureza e a vida organizada nas culturas.

A transformação simbólica da experiência dos sentidos em experiência de sentido estabiliza a natureza humana interior dos afetos e a exterior dos “demônios”.[3] Mitos e religiões, línguas e conceitos se tornaram exorcismos daquelas forças naturais – não da natureza - que tendencialmente dominam a humanidade pelo medo e a violência. Ao integrar em estórias (mitos) e conceitos, e ao dar nomes a estes demônios que são o outro lado dos seus deuses, o projeto de vida da humanidade ganhou uma batalha, não contra a natureza, mas com ela.

Às duas instâncias da cultura – sistema coletivamente herdado e projeto individualmente inovado e depois novamente assumido pela coletividade - correspondem dois eixos: um estrutural-sistêmico e outro histórico. A cultura é sincrônica e diacrônica. O eixo sistêmico (sincrônico) garante a identidade através do zelo pela reprodução da tradição. O eixo temporal (diacrônico) permite assumir experiências do passado e construir um futuro que não representa apenas a reprodução do passado ou do presente. A dimensão histórica da cultura faz compreender que não existe uma cultura “pura” ou “perfeita”. No contrato das gerações cada cultura negocia as necessidades da tradição e da inovação.

O conceito “cultura” nos situa no território da evolução humana que rompe com a visão criacionista de um primeiro casal humano perfeito, que através da queda, o “pecado original”, teria perdido a sua perfeição (o seu “estado de graça”). A teoria da evolução biológica e cultural, hoje aceita pelo conjunto da humanidade, nos diz que não houve queda de um estágio humano superior para um estágio inferior, da perfeição para a imperfeição. A evolução humana, em seu conjunto, representa uma ascensão biológica e cultural. Ninguém duvida, que a vida nos confronta com um movimento de ascensão, do anorgânico para o orgânico, dos primatas para o homo sapiens.

O conceito “cultura” nos situa também no território da natureza humana, que é ambivalente. A evolução do indivíduo e da coletividade, que em seu conjunto é progressiva, pode também regredir. A violência e as guerras do século XX – Auschwitz, Gulag, Hiroshima - nos oferecem muitos exemplos de regressão cultural. E a exclusão social - juntando à falta de pão a falta do acesso ao saber da época - aponta para novas possibilidades de regressão. Não só o super-homem, também o ser subumano ameaça a humanidade. No mesmo campo e na mesma cultura crescem trigo e joio. No mesmo mundo convivem “justos” e “pecadores”, não só lado ao lado, mas cada um, como indivíduo, e cada grupo social, com sua cultura, faz parte do mundo dos “justos” e dos “pecadores”, de forças construtivas e destrutivas, ou, como Freud diria, não existe eros” sem tanatos”.[4]

A ambivalência e a historicidade das culturas impõem a não-normatividade intercultural, ou seja, o fato de que nenhuma cultura é perfeita impede que ela seja modelo ou norma para a outra. Isso não impede um aprendizado recíproco entre diferentes culturas, mas, tampouco permite que uma cultura ou subcultura seja qualificada “cultura de morte”. O “pecado estrutural”, a “situação de pecado”, a “violência institucionalizada” e os “poderes da morte”, apontados por Medellín e Santo Domingo, atravessam as culturas, mas não devem ser confundidos com indicadores de uma “cultura de morte”.[5] Afirmar a existência de uma “cultura de morte” significa equiparar uma cultura humana com uma cultura de abelhas assassinas e subordinar o eros ao tanatos.

 

 

 

2. Objetivos e condições

A construção de “culturas em diálogo” é uma tarefa permanente. Essa tarefa, enquanto processo educativo sem fim, pode ter duas finalidades: a compreensão e o respeito. Compreensão e respeito entre as culturas não são atitudes inatas às pessoas humanas. São adquiridas no decorrer destes processos educativos, que pretendem transformar o olhar ingenuamente etnocêntrico num olhar crítico, que admite a “barbárie” como possibilidade e a vigilância como necessidade de todas as culturas.

A “compreensão” é o objetivo mais pretensioso do diálogo; visa uma partilha e aproximação material, quer dizer, uma compreensão recíproca de conteúdos entre dois projetos de vida diferentes. Os defensores da compreensão recíproca afirmam a existência de uma razão universal inata que progressivamente se manifesta. Procuram nas outras culturas “semelhanças”, “correspondências” e “arquétipos”, e apostam num processo histórico de homogeneização e assimilação cultural. O outro objetivo, o “respeito”, é meramente formal, e exige apenas partilhar regras de jogo que permitem a manutenção das diferenças não compreendidas. O “respeito” como finalidade visa não o conteúdo progressivamente semelhante ou igual, mas “apenas” o respeito e o reconhecimento recíproco para com as tradições autênticas e orientações normativas diferentes.

Sendo assim, para uns a finalidade do diálogo intercultural é a compreensão recíproca com uma perspectiva de unanimidade nos conteúdos essenciais de cada projeto de vida (cultura), enquanto outros insistem no relativismo das razões culturais e contextuais. No último caso, a diferença substancial entre diferentes projetos de vida impede um acordo sobre conteúdos, credos ou normas. Mas, a impossibilidade de um “acordo” não impede o respeito de uma cultura pela outra, sem jamais chegar a uma compreensão recíproca razoável. Em ambos os casos o diálogo, embora com significado muito diferente, é possível.

Além das diferenças culturais deve haver algo que nos une enquanto projeto da humanidade, como por exemplo: a solidariedade para com os mais fracos, a construção de um mundo habitável para todos e a responsabilidade para com o planeta terra, por causa das futuras gerações. Essas tarefas comuns, nenhuma cultura, nenhuma metacultura ou supercivilização, mesmo aquela que se impõe como hegemônica, consegue resolver sozinha. A solução não vem de uma cultura, porque “cultura” significa “proposta de vida particular”, mas de um novo modo de as culturas agirem entre si, inclusive para se fortalecer em frente ao mundo globalizado. Esse novo modo de agir está articulado no “diálogo intercultural”. O diálogo intercultural, por sua natureza, é sempre um convite para a participação de cada vez mais “culturas” deste diálogo. O terceiro excluído, às vezes, perdeu tudo, menos a sua cultura. E através da cultura “mutilada” é possível reconstruir não só um projeto de vida particular, mas os sonhos da humanidade. A esperança pode ser reconstruída a partir do desespero.

O diálogo que visa a compreensão de conteúdos e o diálogo que se contenta apenas com o respeito da alteridade, porque a considera radicalmente misteriosa, exigem condições que ambas as partes, portanto, os parceiros do diálogo reconhecem. Qualquer diálogo pressupõe de convicções próprias que adquirimos através da nossa socialização cultural e pela experiência da vida. Se não estivéssemos convictos da “superioridade” do nosso projeto (ou ao menos o considerássemos como “mal menor”), se não considerássemos os nossos “deuses” mais amáveis, as nossas verdades mais prováveis, as nossas descrições da realidade mais pertinentes e as nossas crenças mais razoáveis do que as dos outros, teríamos que aderir, com um mínimo de honestidade e amor próprio, a um outro projeto. Se não considerássemos o cristianismo mais apropriado para nós que o budismo, seria uma desonestidade existencial, da nossa parte, não aderir ao budismo. Portanto, um certo “etnocentrismo feliz” (Richard Rorty) faz parte do nosso dia-a-dia, produz convicções contextualizadas e amor a si mesmo, portanto, razões para defender o próprio projeto de vida. Quem valoriza e ama seu projeto de uma maneira adulta, pode melhor respeitar e defender o projeto do Outro do que um adepto do relativismo total, para quem tudo e nada vale.

Mas, as convicções próprias na forma do “etnocentrismo feliz”, muitas vezes, são instrumentalizadas pelos governantes, procurando compensações simbólicas para o povo pelo insucesso político. Afirmam uma identidade entre estado, cultura e nação, sugerindo que a esfera política da nação e da nacionalidade está acima dos conflitos de classe. A nacionalidade permite até aos excluídos participar da “grandeza” da nação, com sua função alienante. A identidade entre nação e cultura simula uma nova forma de unidade e projeta os conflitos internos para além das fronteiras do país. Datas nacionais (“independência”), festas religiosas (Guadalupe, Aparecida), vitórias em jogos de futebol ou nas Olimpíadas e prêmios em festivais servem a este propósito. O nacionalismo é pobre em conteúdo e, por conseguinte, pode ser facilmente manipulado. Cria orgulho para os que perderam muitas razões para se orgulhar dos seus governantes. O nacionalismo faz da cultura uma sala VIP. Ele funciona como o marketing que sugere a felicidade e superioridade dos usuários de um determinado produto. Do “etnocentrismo feliz” às lutas identidárias do “etnocentrismo infeliz” articulado com o fundamentalismo étnico, autoritarismo político e fanatismo religioso, às vezes, faltam poucos passos.

Tendo as duas finalidades do diálogo entre as culturas em mente, a compreensão e o respeito, se delineiam as seguintes condições básicas para a sua realização:

- primeiro, consenso sobre meios pacíficos de comunicação;

- segundo, reconhecimento recíproco como parceiros iguais do diálogo, independente do valor, da validade e da estima que os participantes do diálogo conferem às suas tradições recíprocas;[6]

- terceiro, um conhecimento aproximativo da lógica cultural do Outro, com seus desdobramentos no campo político, econômico e ideológico;

- quarto, convicções próprias de cada participante do diálogo, sem, necessariamente, ter certeza ou consenso;

- quinto, o conhecimento de lógicas contextuais e verdades históricas e geograficamente situadas das diferentes causas e projetos;

- sexto, a disposição para um aprendizado recíproco;

- sétimo, um horizonte universal - convidativo e responsável -, frente aos não-participantes do respectivo diálogo. O “horizonte universal” configura a “causa maior” (justiça, igualdade, paz) que pode articular diferentes “causas particulares” (causa indígena, movimento sem-terra, migrantes, excluídos).

 

 

 

3. Conflitos e obstáculos

No início da vida de cada um, a cultura não é uma opção. Nascemos arbitrariamente numa aldeia ou cidade, numa classe social e numa cultura. Tudo poderia ter sido diferente. Desde cedo, a socialização cultural, que chamamos de enculturação, nos fez “naturalmente” assumir os tesouros e as habilidades da nossa cultura. Da “naturalidade” da nossa cultura para a “superioridade” cultural é um passo pequeno. O primeiro aprendizado cultural diz: nosso mundo é o mundo. Mais tarde aprendemos, que nosso mundo não é o mundo mas um mundo entre outros.

Conflitos culturais nascem de questões de disputa pelo poder, de sentido e de questões econômicas que as culturas produzem e diferentemente administram. Todos estes conflitos têm um lado intercultural, portanto, conflitos entre diferentes culturas, e um lado intracultural, onde se trata de conflitos no interior das respectivas culturas. O conflito de poder entre as gerações, por exemplo, pode-se manifestar como conflito entre diferentes saberes: o saber tradicional, dos velhos com sua experiência da vida que constitui uma sabedoria, e o saber científico contemporâneo dos jovens pragmáticos, que dominam tecnologias complicadas sem serem sábios. O equilíbrio cultural entre herança e inovação, entre saber contextual e saber universal tem a sua razão de ser. Na medicina, por exemplo, esta disputa entre sabedoria local e saber universal está presente na competição entre a medicina tradicional e a medicina dos aparelhos “científicos”. Mas, o que quer dizer “universal” e “científico”?

A hegemonia cultural no interior de uma civilização que abarca várias culturas, geralmente, é expressão de uma assimetria social. A própria estratificação social há de ser trabalhado como “mudança cultural”. Quando alguém muda de classe social, muda também seus hábitos culturais e conceitos de solidariedade. Mas, não só a assimetria social, também as lutas por verdades, consideradas absolutas, geram conflitos culturais. As afirmações fundamentalistas de verdades superiores e definitivas, com seus horizontes salvacionistas e exclusivistas, produzem fanatismos e guerras religiosas. Atrás das afirmações da “cultura definitiva” está um “etnocentrismo infeliz”, uma cegueira epistemológica, que compara a própria proposta “ideal” com a prática “real” da outra cultura.

Se a hegemonia cultural está vinculada ao campo econômico e ideológico (“pretensões de verdades superiores para todos”), então pode-se apontar como raízes dos conflitos culturais a superioridade material real e a pretensa superioridade ideológica. Mas, essas afirmações de “superioridade” de um campo da cultura estão sendo pagas em outros campos. O materialismo produz falta de sentido e o fanatismo falta de liberdade. Por isso, uma civilização – compreendida aqui como um conjunto de culturas - não é “grande” por causa da grandeza de suas construções (templos, pirâmides, palácios), mas pelo conjunto de sentido que gera.

Uma fonte de conflitos culturais e de impedimento para o diálogo é a dicotomia entre cultura e barbárie. A dicotomia “cultura” versus “barbárie” e a projeção da barbárie para a cultura do Outro é o grande impedimento do diálogo intercultural. Para os conquistadores da América, que se consideravam portadores de “cultura”, “civilização” e “progresso”, os povos conquistados viviam culturalmente na “barbárie” e religiosamente na “idolatria” ou “magia”. Desde a sociedade de Sócrates, aliás um mestre de diálogo, a dicotomia entre “civilização” e “barbárie”, entre “cidadãos” e “bárbaros” faz parte do fundo civilizatório ocidental. Não existe a possibilidade de um diálogo em condições de hierarquia institucional e assimetria política.

Diante da grande diversidade cultural das Américas, os colonizadores se sentiam inseguros e, ao mesmo tempo, confirmados na superioridade de sua civilização. Os jesuítas José de Acosta (1540-1600), no Peru, e Antônio Vieira (1608-1697), no Brasil, qualificaram a pluriculturalidade de “confusão babilônica” e “obra do diabo”, obra daquele que cria, por sua própria natureza, desordem.[7] Na origem, segundo o pensamento dominante da época, teria havido uma cultura única. Teria sido o pecado que destruiu a monocultura original. “Barbárie”, “idolatria” e “diversidade” – e mais tarde “democracia - foram considerados ramos da mesma árvore do pecado com seus frutos de ignorância, desordem e pluralidade.

A idéia da monocultura original articulada com a idéia da superioridade da civilização ocidental se amalgamaram na ideologia da conquista, permitindo justificar a expansão européia com seus custos e supostos benefícios como:

- esclarecimento daqueles que andavam nas trevas, sem fé e ciência;

- pacificação dos que por ociosidade se tornavam guerreiros e nômades, portanto, sem civilidade, e

- ordenamento dos que viviam sem leis e sem gramática, sem rei e sem escrita, moralmente degenerados e culturalmente atrasados.

A “política de trabalho” – aplicada através das encomendas, das reduções e da escravidão – era um instrumento de pacificação. A “verdadeira religião” da Igreja e as leis universais impostas pelo Estado apontavam para a redenção dos povos indígenas e a reconstrução monocultural de um projeto de vida dominado pelo colonizador, porém, mais próximo às origens divinas da humanidade.

            Mas, já na época, havia pessoas – às vezes isoladas e perseguidas - que remavam contra a correnteza da ganância e do preconceito. Logo no início da conquista, em 1511, a voz profética do dominicano Antônio Montesinos denuncia o etnocídio dos povos indígenas, quando percebeu, que não o índio pagão, mas o colonizador cristão estava em “pecado mortal”.

Mais tarde, Michel de Montaigne escreveu em seus Ensaios, de 1580, contra os preconceitos de sua época, que via “nada de bárbaro ou selvagem” nos costumes dos povos do Novo Mundo: “Cada qual considera bárbaro o que não se prática em sua terra”.[8] Vozes dissonantes, como as de Montesinos e Montaigne, permitem questionar o argumento da fatalidade do “espírito da época”.

Para esclarecer os obstáculos, que impedem o diálogo entre as culturas, precisamos ir além do projeto colonial. Desde a Antigüidade há uma disputa acirrada entre contextualistas e universalistas sobre possibilidade e modalidade de um diálogo entre culturas. Os contextualistas apontam para versões locais de racionalidade e normatividade. Afirmam que cada cultura representa um projeto de vida tão peculiar, com gramática, dicionário e comportamentos normativos próprios, que somente aqueles que pertencem a mesma família cultural podem realmente comunicar-se e entender o significado do respectivo mundo simbólico. Os parâmetros do verdadeiro são indissoluvelmente relacionados com a compreensão concreta e particular do próprio mundo e de si.

Neste caso, um diálogo entre culturas é um diálogo entre surdos, já que cada interlocutor compreende somente os sinais e linguagens do seu próprio universo cultural. Os parâmetros de outras culturas podem ser apreendidos e vividos paralelamente, num bilingüismo existencial. Mas nunca podem ser “fundidos” ou “equacionados”. Quem fala português pode aprender inglês e vice-versa. Existe a possibilidade do um aprendizado cultural. O paradigma da inculturação aponta para esta possibilidade de viver, ao mesmo tempo, em dois universos culturais e de dispor de diferentes jogos de linguagem. Mas, este aprendizado é bastante limitado, porque é difícil de aprender e compreender mais de, digamos, quatro línguas ou culturas, o que torna compreensível o desespero do jesuíta José de Acosta diante das 600 línguas indígenas encontradas no vice-reino do Peru. O contextualismo, em sua versão de relativismo radical, afirma a incomensurabilidade dos parâmetros do verdadeiro e do falso entre diferentes racionalidades culturais. Assim parece impossível que diferentes tradições possam se comunicar entre si ou aprender umas das outras.

            Os universalistas, por sua vez, afirmam, na escola da filosofia grega (Platão), do cristianismo (Agostinho) e da civilização hegemônica, que existe uma racionalidade comum a todo o gênero humano que permite uma compreensão universal. O diálogo aprofundaria e ampliaria essa compreensão. Na realidade, os universalistas não compreendem a diversidade contextual, mas a subordinam ao seu universo cultural, recorrem a hierarquizações estruturais ou a explicações evolucionistas, subordinando a diversidade à perda de uma unidade primordial. A diversidade, neste caso, é resultado da evolução e/ou degeneração histórica. Mas a unidade primordial, embora prejudicada (pelo pecado, diria Agostinho), está ainda presente na racionalidade e na finalidade do destino comum ao gênero humano. Em sua forma extrema, este universalismo está visceralmente corrompido pela hegemonia do mais forte. Explica a diferença como inferioridade e a pobreza como atraso.

A disputa entre o universalismo da razão inata (normatividade da razão única, lei natural, direitos humanos universais) e o contextualismo, com seus parâmetros interculturais incomensuráveis, faz com que o diálogo intercultural pareça ou sem problemas ou sem chance. Mas, entre as soluções extremistas, onde um adversário (o universalismo) precisa eliminar o outro (o contextualismo) para poder sobreviver, pode-se pensar em um modelo diferente, onde a dimensão universal faz parte da dimensão contextual e vice-versa. O diálogo intercultural pode não criar concordâncias inter- e intraculturais, mas pode imaginar propostas para o terceiro excluído deste diálogo, cuja vontade de viver e participar é um dos pressupostos da família humana.

 

 

 

4. Horizontes

O lugar do diálogo entre culturas pode ser situado entre duas negações; entre interesses que buscam a hegemonia cultural e entre a indiferença pós-moderna, que abdica da solidariedade e deixa indivíduos e povos à mercê de si mesmo, do mais forte ou da natureza. Onde dominam interesses e indiferença não há diálogo. O diálogo entre culturas é um foro de paz, onde se procura superar a desolidarização social e o esquecimento histórico. O diálogo representa a possibilidade de transformar a irracionalidade das armas em racionalidade das palavras partilhadas e a irresponsabilidade narcisística em voz atenta ao outro. Entre interesses e indiferença o diálogo é a voz da responsabilidade e da memória. No diálogo, o mais fraco, o ausente e o outro são lembrados e assumidos.

O diálogo é uma prática de comunicação responsável. Ele procura superar as relações assimétricas e questionar os discursos hegemônico que impedem a comunicação. O diálogo é uma exigência da “segunda instância” da cultura, da “inovação individual”, sempre numa certa tensão com a “primeira instância”, a “tradição coletiva”. No momento em que a “inovação individual” se tornou culturalmente possível, a própria cultura precisava desenvolver uma capacidade de tolerar o dissenso e criar mecanismos de diálogo que substituem a eliminação física do Outro. A modernidade, que ampliou a liberdade individual, necessariamente precisava também ampliar os foros de diálogo.

Pelo diálogo intra e intercultural, ninguém precisa “sacrificar” as suas razões em benefício das razões de uma outra cultura. Ninguém é obrigado a renunciar à própria experiência e tradição. O diálogo acontece num âmbito de auto-estima, de tolerância e aprendizado, não de conversão. A auto-estima cultural de um povo revigora a sua imunidade contra a invasão cultural alienante e incentiva a resistência anti-hegemônica a partir do próprio projeto. A “conversão” enquanto abandono forçado de padrões culturais e imposição de racionalidade cultural alheia enfraquece o projeto de um povo e compromete seu futuro.

O modelo dialogal parte do contexto; não pressupõe uma compreensão objetiva. Exige apenas perspectivas de relações simétricas dos interlocutores, o reconhecimento da dignidade das diferenças e a vontade de aprender algo. Compreensão e reconhecimento pressupõem interlocutores que esperam apreender uns dos outros. A universalidade, nesta perspectiva, não é um dado previamente estabelecido, mas está na não-exclusão estrutural de nenhum interlocutor e na articulação das lógicas contextuais em vista do terceiro excluído.

O diálogo, que expressa uma racionalidade construída e compartilhada, não só questiona a “lei natural” do mais forte, a fatalidade do destino e a normatividade daquilo que é, numa determinada época, cultural e politicamente correto, mas contesta também uma racionalidade ahistórica e descontextualizada. O diálogo, como conquista humana que interfere na naturalidade, linearidade e fatalidade dos acontecimentos e das estruturas sociais, é um dado cultural, como também a própria racionalidade o é. A suspeita de que atrás do correto de cada época têm grupos sociais privilegiados que impõem sofrimentos e privações a outros grupos, não é contra o “clima” do diálogo. O diálogo é necessariamente crítico para poder contextualizar os conflitos através de discursos que permitem a participação de todos em condições de igualdade.

O diálogo com sua racionalidade construída e compartilhada abandona o conceito da verdade como correspondência à “realidade” enquanto “essência” das coisas. A idéia de tornar o pensamento uma descrição da realidade idêntica ao objeto do conhecimento exprime o desejo de dominar o objeto. No diálogo entre as culturas há um debate sobre descrições de diferentes projetos de vida, mas não há descrições nem projetos privilegiados. As descrições – os diálogos – articulam a relevância de diferentes projetos e reequilibram a relação custo-benefício da convivência humana.

No horizonte deste “diálogo entre as culturas” está a paz universal, que visa a construção de uma humanidade composta por uma imensidão de culturas. Os sujeitos de cada uma destas culturas conseguem ver partes do seu sonho e projeto presentes nos sonhos e nos projetos dos outros. A paz não pode ser construída a partir de dialéticas eliminatórias ou complementaridades funcionalistas e integracionistas. Proponho um novo paradigma, o da concomitância diferenciada e articulada, que no kairós histórico carrega a memória de toda a história e guarda na parcialidade de cada cultura os anseios de todos. É o horizonte utópico da coincidência de opostos, segundo o sonho de Nicolau de Cusa (1401-1464), seguidor de Raimundo Lúlio e Mestre Eckhart. A concomitância diferenciada e articulada supera a violência de uma universalidade que, de fato, se compreende como totalidade hegemônica; ela supera também o fosso pós-moderno que isola os contextos pela indiferença e rejeita o fundo lucrativo que caracteriza a acomodação complementar e funcionalde projetos diferentes.

O significado da “concomitância diferenciada e articulada” poder-se-ia mostrar

- no campo do verdadeiro, que é o campo da teoria (ciência),

- no campo do justo, que é o campo da prática (moral, direito) e

 - no campo do belo, que é o campo do gosto (arte, religião).

O campo do justo é a esfera cultural mais conflitiva frente à universalidade. Ao mesmo tempo que se afirma o direito de uma cultura particular precisa-se mostrar, que esta particularidade é expressão de um direito que as demais culturas igualmente podem invocar. A normatividade transcultural da lei, do direito e da moral não é evidente. Ela é resultado de negociações difíceis (“diálogos”), porém necessárias, para que os pobres e excluídos tenham um instância – Constituições e cortes internacionais, por exemplo, - para cobrar seus “direitos humanos”.

No campo da ciência, sobretudo naquilo que se refere ao campo restrito da tecnologia, é mais fácil concordar com uma certa universalidade normativa. Aviões, computadores e internet funcionam mundialmente iguais. Mas, a ciência fora do campo da mera tecnologia também é cultural e historicamente situada. Portanto, também é impulsionada por visões do mundo, crenças e hipóteses contextualizadas.

No campo do gosto, respectivamente no campo das crenças, os diálogos (ecumênicos, inter-religiosos, filosóficos) se limitam a uma certa concordância formal dos meios (exclusão de violência) que permite, a partir de uma diferença material de propostas, que faz parte da identidade de cada crença, mesmo assim contribuir para a realização de fins comuns (mundo justo, paz).

No campo da arte, respectivamente, no campo da música, é mais fácil mostrar o significado da “concomitância diferenciada e articulada”. Músicos contemporâneos e clássicos de tempos passados, com seus estilos culturais e tempos muito distantes, conseguem internacionalmente comunicar-se e construir um clima de confraternização. Podemos imaginar que no mesmo dia se realizam concertos de Bethoven em Bogotá e de Mozart em São Paulo, shows de John Lennon e Paul Mc Cartney em Tóquio, de Chico Buarque em Luanda e de Caetano Veloso em Londres, de Kitaro em La Paz, de Pablo Milanés em Roma e do grupo Buena Vista Social Club em New York. Todos compreendidos, aplaudidos, confraternizados com multidões em alegre comunicação.

O diálogo como “concomitância diferenciada e articulada”, que se experimenta na música, mas também na ciência e na moral, faz compreender que a dimensão universal não impõe necessariamente uma uniformização de melodias ou conteúdos. Mas, ela opera uma sensibilização dos ouvidos e dos sentidos em geral, permitindo uma percepção misteriosa e participação progressiva de todos.

O diálogo entre culturas não suscita expectativas falsas. Não promete a superação da ambivalência da condição humana e da alienação social., nem alimenta a visão de uma epistemologia total sem mistério e de um progresso teleológico calculável da história. Abre, porém, caminhos de comunicação e horizontes de aproximação sob as condições:

- que nenhuma cultura se arrogue ter a última palavra,

- que a comunicação faça parte de uma responsabilidade ampla e

- que todas as culturas respeitem reciprocamente seus mistérios.

Por fim, o diálogo não é uma disputa, mas um vai e vem de “palavras verdadeiras” que iluminam perguntas abertas de diferentes ângulos. As perguntas postas sob uma nova luz permitem transformar antagonismos irreconciliáveis em polaridades constitutivas de uma unidade construída, não através da eliminação dialética, nem pela integração via complementaridade funcional, mas na concomitância diferenciada e articulada. Esta carrega no kairós histórico a memória de toda a história, guarda na parcialidade de cada cultura os anseios de todos e na participação e cooperação entre iguais a possibilidade de uma nova práxis.

 

(Agenda Latinoamericana’2002)

 



[1] Informe de Aryon Dall’Igna Rodrigues, do Laboratório de Línguas do Instituto de Letras da Universidade de Brasília (UNB) no simpósio sobre línguas indígenas na reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em Manaus [Agência Estado, 25.04.2001].

[2] Cf. E. Cassirer, Ensaio sobre o homem. Introdução a uma filosofia da cultura humana, São Paulo: Martins Fontes, 1997.

[3] Cf. E. Cassirer, Linguagem e mito, 4a ed., São Paulo, Perspectica, 2000. – Cf. tb.: J. Habermas, Die befreiende Kraft der symbolischen Formgebung, in: Vom sinnlichen Eindruck zum symbolischen Ausdruck, Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 1997, 9-40, aqui 20.

[4] Cf. S. Freud, O mal-estar na civilização [1929], in: Obras Completas, vol. XXI, 81-171, cap.VII.

[5] Cf. Medellín, Doc. II,1 e 15 e Santo Domingo, n. 13 e 243

[6] Cf. J. Habermas, Vom Kampf der Glaubensmächte. Karl Jaspers zum Konflikt der Kulturen, in: IDEM, Vom sinnlichen Eindruck zum symbolischen Ausdruck, 41-58, aqui 57.

[7] “Diabo” vem do grego diabalein, que significa “criar desordem”.

[8] M. de MONTAIGNE, Ensaios, livro 1, cap. XXXI.